″Era dinheiro nosso, não foi lotaria nenhuma, agora vale muito pouco″

2022-05-14 16:49:33 By : Ms. Eunice Fang

A Mevil foi declarada falência em 1995, um ano depois venderam os bens, mas os trabalhadores e restantes credores só firam o dinheiro ao fim de quase 22 anos.

Saldar dívidas, pagar a casa, mudar de carro. Dizem os trabalhadores que tanto poderiam fazer com os salários e os subsídios em atrasos quando fechou a MevilL, metalomecânica Vilafranquense. Deixaram de receber os salários, o tribunal decretou a sua falência a 22 de maio de 1995; receberam agora esse dinheiro, quase 22 anos depois. Vale muito menos, dá para reparar o carro, fazer obras, guardar para as despesas de saúde ou de um lar. Os que sobreviveram. Muitos morreram e a outros a doença impede-os de perceber que foram finalmente indemnizados.

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"Era dinheiro nosso, não foi lotaria nenhuma, agora vale muito pouco, Foi trabalho prestado e que a empresa não conseguiu pagar na altura devido às dificuldades financeira. Dificuldades que não conseguiu vencer". Daniel Pirralha, 74 anos. Começou a trabalhar na Mevil aos 29 anos e permaneceu até ser declarada oficialmente falência, nem sabe muito bem porquê. "Naquela altura arranjava trabalho em qualquer lado, mas como tinha a minha profissão e era perto de casa, fui aguentado para ver se a situação melhorava. Mas isso nunca aconteceu, foi-se arrastando, arrastando, cada vez mais no fundo, até o tribunal dar ordem para fechar". Entrou como servente, adaptou-se "muito bem", quando saiu era maçariqueiro, cortava chapas, metais e tubo com o maçarico.

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Daniel é natural de Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos, fixou-se na localidade de Nova Loja, em Vila Franca de Xira depois da "guerra do Ultramar". Deixou a agricultura para trabalhar numa fábrica de detergentes, de onde saiu para a metalomecânica. "Não foi por causa do salário, foi por causa dos turnos. E na Mevil havia a possibilidade de aprender um ofício, era uma escola!"

"A Mevil era uma grande escola. Muitos rapazes aprenderam lá a profissão e depois foram trabalhar para grandes empresas, ainda hoje lá estão". Diz, também, Alípio Carvalho, 67 anos, dos quais 15 na metalomecânica.

Alípio trabalhou em madeiras, era entalhador, esculpia flores e outros ornamentos, ofício que ainda hoje considera ser o seu. Saiu por ser mal pago.

"Estive lá sete anos na indústria da madeira sem ser aumentado e fui para a Mevil por causa do ordenado. Ganhava seis contos e passei o dobro". Quase o dobro, fazia muita diferença. Foi trabalhar com uma calandra, máquina de fazer tubos.

Primeiros salários em atraso

A empresa tremeu nos anos 70, mas foi nos anos 80 que "começou a andar mais tombada", As coisas já não estavam bem no 25 de abril, éramos pagos à quinzena - quando comecei era à semana - e os pagamentos já falhavam. O patrão trabalhava em carrossel, pagava as dívidas aos bancos com o dinheiro que ia recebendo de cada um deles. Deu-se o 25 de Abril e os bancos fecharam as portas, o carrossel deixa de contar, começam a cair as contas, as encomendas a diminuir. Foi quando se pediu a intervenção do Estado". Explica José Fernandes, 78 anos, um dos funcionário mais antigo quando a empresa fechou. Entrou com 22 anos, ali esteve "35 anos e oito meses".

José Fernandes cresceu e evoluiu naquela que já era a casa do pai, seguiu-lhe os passos e sempre teve orgulho nisso. Ainda hoje, quando visitámos as instalações, dois grandes edifícios germinados, nas cercanias de Vil a Franca de Xira, que conservam uma chapa à entrada com a inscrição Mevil. "Aqui eram os escritórios onde recebíamos os salários. Para o fim, nunca sabíamos quanto dinheiro iríamos receber". Entretanto, por ali passaram outros negócios, agora é a Munditubo.

É um dos mais velhos vivos, também um dos mais reconhecidos, não só na indústria como em Vila Franca de Xira, asseguram os amigos. "O Zé tinha estudos, era culto", elogia Daniel Pirralha.

O Zé era serralheiro civil quando entrou na Mevil, em 1960, tinha 22 anos. Tinha experiência na construção, iniciou-se como serralheiro, tirou o curso Industrial à noite, foi evoluindo na profissão e na hierarquia. Saiu de lá preparador, avaliava o que era preciso para a obra e preparava todo o material.

Alípio e José contam que com a intervenção estatal e com o envolvimento da comissão de trabalhadores sentiram melhorias, foi uma fase boa, tiveram esperança. "Empresas grandes como a refinaria de Sines faziam-nos encomendas, apanhámos uma grande quantidade de trabalho, aumentámos o fundo de maneio, os salários eram pagos a horas, construiu-se o refeitório."

Defendem que piorou quando regressou aos proprietários, já não os fundadores mas os filhos e outros sócios. Má gestão, um salto maior que a perna, a concorrência? Mas todo o país tinha empresas a fechar. Em com a entrada da CEE em 1986, entraram também as multinacionais, não resistiram. A Mevil não foi a única indústria a fechar em Vila Franca de Xira (ver texto ao lado).

"Entrei para a empresa a seguir ao 25 de Abril e já estava tecnicamente falida, estive lá 20 anos, sai com 46. Começaram a atrasar os salários, com a CEE era preciso fazer mudanças que não se fizeram, enfim." Joaquim Humberto, 48 anos, cumpriu serviço militar no Ultramar, teve várias profissões antes de chegar à Mevil. Entrou como torneiro mecânico, passou para o controle de qualidade, terminou como orçamentista.

"Imagine o que é chegar ao fim do mês e não receber nada ou muito pouco; não ter subsídios, nunca saber com o que podíamos contar. Construi a minha casa com muito esforço, não pagava renda, também não tinha filhos. A mulher trabalhava no campo, no aviário de uma vizinha, tínhamos as nossas coisas, a horta, aguentámo-nos. Para os colegas que tinham rendas, filhos para criar, era muito difícil", diz Daniel Pirralha. "Eu aguentei-me porque a minha mulher trabalhava", acrescenta Alípio de Carvalho. Era operária da Pluricoop, uma empresa do concelho que resistiu aos anos 80 e 90 do século passado mas que não sobreviveu ao século XXI, fechou em 2011.

Anos de ouro à falência

"A Mevil abriu em 1960, o meu pai foi um dos fundadores, trabalhava noutra fábrica e foi convidado pelo patrão. Começaram num edifício pequeno em frente à estação, onde agora está um novo edifício e é um banco. Eram dois sócios, faleceram há muito. Construíram depois um pavilhão [em Santa Sofia, a alguns quilómetros do centro de Vila Franca de Xira, que a maioria dos trabalhadores percorria a pé], foi crescendo, construíram o segundo pavilhão, chegou a ter mais de 200 trabalhadores. Até que começou a ter problemas de tesouraria, nessa altura já estava na mão dos herdeiros".

Quando fechou não chegava aos 30 funcionários, muitos já tinham saído e também esses só agora receberam os salários e subsídios atrasados. Ao todo foram 94 os trabalhadores ressarcidos, num total total de 152 credores, o que envolveu o pagamento de 609 937,90, todo o dinheiro que restou da Mevil, depois da venda do património, a que se juntaram os juros do depósito.

Rosa Saúde, 64 anos, dirigente sindical reformada mas que "continua na luta", acompanhou todo o processo. Era, então, o Sindicato dos Metalúrgicos de Lisboa, que se fundiu no SITE (trabalhadores das indústrias transformadores e de energia", em prole dos trabalhadores e muitos anos a delegação de Vila Franca de Xira. Apoiaram 84 dos 94 trabalhadores indemnizados, todos os que eram seus associados.

"Em 1986 houve uma tentativa de recuperação da empresa porque começarem a atrasar o pagamento dos salários. Mas não eram só os salários, havia dívidas à segurança social, aos bancos, aos fornecedores... O Tribunal decretou falência e considerou os trabalhadores como primeiros credores, que receberam a totalidade da dívida. O que sempre contestámos é que, se havia dinheiro da venda dos bens da empresa, porque é que não se pagava logo aos trabalhadores? Fizemos manifestações, escrevemos para todas as entidades, só ao fim de mais de 21 anos é que receberam. Receberam toda a dívida mas os valores não representam o mesmo agora", explica. Nem é preciso fazer contas.

José Fernandes assistiu ao leilão da venda de todo o património, ele e outros colegas. "Não ia comprar nada, queria saber o que havia, para onde ia tudo aquilo. Foram muitos anos, aprendi, havia camaradagem". As instalações e as máquinas renderam 100 mil e 100 contos, 500 mil e 500 euros.

Uma técnica do Tribunal de Vila Franca de Xira justifica o arrastar do processo pela existência de "múltiplos recursos com efeito suspensivos relativamente ao andamento do processo; também a circunstância de o Tribunal estar durante vários anos com excesso de pendência causado por falta de funcionários". Justifica, ainda: "Estes processos de grandes empresas são muito complexos e muitas vezes o seu tratamento é demorado: são necessários vários dias para tramitar cada fase dada a sua complexidade, número de credores, quantidade de bens, etc".

Explicações que vão de encontro às de Manuela Paupério, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ver entrevista). E da experiência do advogado António Jaime Martins, especialista nesta área . " Há tribunais de comércio que têm uma pendência muito elevada até porque tivemos um boom de insolvências com a crise, não só de empresas mas também de particulares. Os tribunais de comércio não são em número suficiente para a quantidade de insolvências e estes são processos complexos, às vezes com mais de 100 credores cada. Além de não estarem preparados com juízes e funcionários suficientes para dar resposta. Também faltam administradores bem preparados."

Fala da atualidade, após as alterações legislativas com o Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo decreto-lei 53/2004, que também tem sofrido alterações. Criaram-se os tribunais de comércio, agora já não são falências mas insolvências. Existe a possibilidade das empresas negociarem com os credores um plano de viabilização sem o recurso aos tribunais e, nos casos em que isso acontece, muitas das decisões são tomadas a nível dos administradores. "Em termos de legislação está relativamente estabilizado, o problema é a falta de juízes e de administradores especializados, diz António Jaime Martins, que acredita que hoje um processo não demoraria tantos anos.

Era bem diferente quando a Mevil fechou, tudo era menos expedito e foram apresentados vários recursos das decisões dos tribunais, incluindo o Supremo, muitos deles contra a graduação dos créditos. Só os trabalhadores receberam a totalidade da dívida , com valores que vão de 129 a 24 742 euros por cada um, consoante a antiguidade. Todos os outros credores, nomeadamente instituições estatais, viram os valores baixar. Em 610 mil euros disponíveis , mais de metade, 380 mil, destinaram-se a pagar aos trabalhadores.

Tiveram sempre esperança de que iriam ser pagos, por saberem que havia dinheiro. O que não compreendem é a razão pela qual não receberam os juros desse depósito. Explica Jorge Antunes, da secção de Vila Franca de Xira da União dos Sindicatos, a que pertence o SITE, que nestes processos, há uma conta para o qual revertem os juros, que depois são distribuídos segundo os créditos reclamados, o que aconteceu com a Mevil. Essa é a razão pela qual os 500 mil e 500 euros de venda do património, totalizavam 610 no momento de pagamento das dívidas, em dezembro último. E que não chegou para pagar os montantes inicialmente devidos.

"Quem não viveu esta situação dirá que foi feita justiça aos trabalhadores aos lhes serem pagos os créditos a que tinham direito, mas para esses operários foi apenas a conclusão de um processo judicial que levou à total desvalorização do dinheiro a que tinha direito", conclui o sindicalista.

O DN esteve com quatro dos trabalhadores que viveram todo o processo até ao fim. Com José Fernandes, Joaquim Humberto, Daniel Pirralha e Alípio de Carvalho, por ordem decrescente de idades, também de antiguidade na empresa, com mais salários e subsídios em atraso, o que se refletiu nos valores que só conseguiram recebe a partir de dezembro. É Alípio Carvalho quem tem o contacto de todos, os que vivem no centro de Vila Franca ainda se vão encontrado. É sempre uma alegria o novo reencontro. Alípio e José fazem caminhadas.

Lemos os nomes dos 94 trabalhadores credores, um ou outro já não se lembram quem era. "Devem ser daqueles rapazes que estiveram lá pouco tempo". Uns 20 já morreram. "O quê, já morreu? Mas foi à pouco tempo. Coitado!" Tentam saber o que é feito das famílias dos falecidos. "Não consegues falar com a filha, sabes onde morava?" Os herdeiros têm direito a receber esses créditos, dívidas e lucros não prescrevem com a morte. Nem reclamaram esses valores até agora, talvez porque nem saibam que existem.

"Vou meter o dinheiro num banco, guardar para a reforma, talvez para um lar, não tenho filhos. Na altura dava para comprar um bom carro, agora só se for em segunda mão". É o destino do cheque no valor de 23 320 euros que recebeu José Fernandes, reformado aos 62 anos de idade.

Quando a Mevil fechou transitou com Alípio para a Grumil, empresa do mesmo ramo para onde foram convidados por um antigo administrador da Mevil. Aí trabalharam quatro anos, posteriormente também esta empresa fechou. "Tinha muitos anos de descontos e reformei-me por anos de descontos. Comecei a trabalhar aos 12 anos numa fábrica de peças para automóveis".

Joaquim Humberto divide agora os dias da reforma entre Castanheira do Ribatejo e Peniche. Há 21 anos saiu da metalomecânica para vender pelas de aço inoxidável, a ganhar o mesmo ordenado. mas conta que lhe faltava tudo o resto. Reformou-se aos 60 anos. Recebeu 13 084 euros. "Olhe, o carro foi logo para a oficina, está velho, tem 20 anos e há muito que precisava de uns arranjos. Em 1995, com este dinheiro podia mudar carro, mas seria sempre um em segunda mão". Conta o que viveu, mas sem fotos. "A minha história é igual aos outros. É melhor não aparecer, ainda me vêm assaltar, há gente para tudo".

Lembra Daniel Pirralha: "Apanhei três anos no desemprego [anos a que tinha direito], mas estive só um ano. Trabalhei numa fábrica de plásticos e depois fui para vigilante, sempre a pensar em ir trabalhar para a Câmara. Abriu um concurso e concorri, fui lavar as viaturas, reformei-me com 62 anos". Recebeu 12 205 euros. "Na altura tinha comprado um carro, também já estava gasto. Vou guardar, a mulher não está bem de saúde qualquer dia tenho de a meter no lar, ela e eu. Não temos filhos".

Alípio era bem mais novo, tinha 48 anos quando a fábrica fechou. "Fui para o "rasga manta". O que significa trabalhar para empresas fornecedoras de mão de obra. Reformou-se com 64 anos. Recebeu 9 137 euros. "Uma parte guardo e outra é para fazer obras na cozinha, mas não pode ser grandes luxos". E os sócios da empresa». "Não ficaram muito bem, os principais já morreram".

Responde por todos os processos de falências Rosa Saúde. "Penso que não houve aproveitamento. Mas os patrões ficam sempre melhor que os trabalhadores, até porque têm hipóteses de se prepararem para essas situações. Em à partida, também têm mais recursos".