Opinião, por Eduardo Affonso: Uma chaise de chintz fúcsia | Lu Lacerda | iG

2022-09-10 02:07:10 By : Mr. Leo Lo

O curso de Arquitetura é uma espécie de buraco negro, que absorve não a luz, mas todos os talentos ainda incipientes que passarem por perto.

Quer fazer Teatro, mas isso não é o que sua família espera de você, depois de todo o investimento no Santo Inácio ou no Santo Agostinho? Vai para Arquitetura.

Quer fazer Música, mas sabe que, a menos que se torne primeira voz de uma dupla sertaneja goiana (e você curte piano, e é carioca) não conseguirá pagar nem o Uber para ir tocar em barzinho? Vai para Arquitetura.

Gosta de escrever, fotografar, desenhar, criar roupas, joias, cenários, contar piada, fazer bolo, procurar vestígios arqueológicos, analisar filmes, dançar, cultivar bromélias, e acha que nada disso dá para pagar as contas no futuro? Vai para Arquitetura.

No curso de Arquitetura tem até gente que gosta de arquitetura. Não é o padrão, mas tem. E aí reside (sem trocadilhos) todo o charme da coisa.

É provável que nos cursos de Odonto se fale de dente.  Não apenas, claro. Também hão de falar de gengiva, tártaro, broca, pino, prótese, anestesia. Nos cursos de Arquitetura fala-se de política (o arquiteto é um ser político, por natureza), de arte (o arquiteto é, antes de tudo, um criador), de beleza (o arquiteto é um esteta).  E de equilíbrio dinâmico, fluidez dos espaços, jogos de volumes, balanços, tom, ritmo, pastiche, partido, resgate, vãos livres, cheios e vazios, leitura, racionalidade, dramaticidade, fluxo, arquétipo, vernáculo, efêmero, orgânico. E conceito. Muito conceito.

Eu não sabia de nada disso quando era garoto e brincava de casinha. No papel pautado de um caderno, rabiscava sala quartos cozinha banheiro varanda. Indicava portas e janelas, fazia uma fachada, um telhado de duas águas, uma chaminé. Depois inventava que nasceu mais um filho, que o pai comprou um carro e precisava de uma garagem, e ia apagando as linhas das paredes, fazendo um puxadinho, uma sala maior, um quarto de costura, uma despensa. Ao fim de algumas horas, restava uma folha imprestável, uma fachada irreconhecível — pois fora verde, depois azul, um dia rosa, e as duas janelas haviam dado lugar às portas do armazém, e no lugar do telhado surgira um segundo andar para a filha que se casara.

Minhas casas não tinham suíte — despropósito inventado muito depois (“Onde já se viu, uma privada dentro do quarto!”). Nem closet (o armário embutido era um luxo que ainda estava por chegar). Mas dispunham de sala de visita — um lugar sombrio, solene, com os melhores móveis e as cortinas mais pesadas — espécie de Santíssimo, só aberto em ocasiões especiais, quando havia visitas dignas deste nome. E não podia faltar a cozinha de fora, com fogão de lenha, e a cozinha de dentro, com fogão a gás. E um tanque e um quarador.

Ainda não sabia que aquele brinquedo de rabisca e apaga e rabisca de novo se chamava “arquitetura” — nunca houvera um arquiteto na família, apenas advogados, hoteleiro, oficial de justiça, comerciante, porteiro de cinema. E eu não me via sendo outra coisa senão professor, escritor, diplomata.

Mas veio o buraco negro da Arquitetura e me sugou. A mim, que não entendia nada de cinema (foi então que me apaixonei por Godard, Fellini, Antonioni), que conhecia um único museu (o da Inconfidência, em Ouro Preto), que nunca tinha ouvido música atonal ou visto uma peça com gente pelada falando palavrão.

Entrei na faculdade de Arquitetura como um cordeiro sobe ao altar do sacrifício — sem ter a menor ideia do que me aguardava.

No primeiro projeto, não me pediram para desenhar uma casa — sala quartos cozinha banheiro alpendre protegendo do sol da tarde — mas… uma loja de meias. Eu não sabia que existiam lojas de meias – meias eram compradas em lojas de roupas, ora! Projetei prateleiras em todas as paredes, vitrine na frente, um balcão para a máquina registradora. Era isso, então, a Arquitetura?

Uma colega viu a pobreza da minha proposta e sugeriu colocar o balcão na diagonal, deixar uma parede livre com um espelho, instalar um lustre e colocar, num canto, uma chaise de chintz fúcsia.

Eu não sabia o que era uma chaise. Não conhecia nenhum bicho chamado chintz. Não fazia ideia do que fosse fúcsia. Mas desenhei um retângulo e escrevi “chaise” (a amiga tinha soletrado). Puxei uma seta e indiquei: chintz fúcsia. Tirei 8, se não me engano. 

E levei mais de 40 anos para escapar desse buraco negro — ao qual devo quase tudo que sei, e onde vislumbrei a imensidão do que ignoro.

Adorei o texto. O título é impagável. Não fui sugado pelo buraco negro, porque em vitória ES não tinha arquitetura na minha época. Essa história também só podia vir de um taurino como eu. Abraços.

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